quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Quem tem medo da fome?

Escrevi este texto esta semana para ser lido no lançamento de uma campanha de doação de alimentos para orfanatos e outras instituições em um dos colégios onde trabalho. Escapa um pouco à proposta do blog, mas é bastante oportuno.
............................................................................

Em 1946 o intelectual brasileiro Josué de Castro publicou um livro intitulado A Geografia da Fome. Naquela ocasião o livro causou grande polêmica, pois a fome era entendida como algo insuperável e resultante de adversidades da natureza. Se as pessoas passam fome no Nordeste, por exemplo, é por causa da seca – pensava-se. Castro inova ao alertar para o óbvio: a fome é um flagelo fabricado pelos homens, contra outros homens.

Sessenta e dois anos mais tarde estamos aqui, refletindo sobre a fome. E não se trata daquela fome que a gente sente às seis da manhã, antes de nos sentarmos para o café da ou aquela fome que sentimos por volta das nove, quando começamos a contar os minutos para o recreio, quando vamos pedir um pão de queijo na cantina. Estamos aqui buscando refletir sobre uma fome que dói. Uma fome que mata. Uma fome que nunca sentimos. E é por que não queremos senti-la que devemos nos indignar diante da persistência dela.

É comum lembrar-se da África quando o assunto é fome. Não precisamos ir tão longe. Do lado de cá do atlântico há muitos famintos. Na Bolívia? No Suriname? Lá também... Mas segundo a PNAD realizada pelo IBGE em 2004, 13 milhões de brasileiros passam fome. Treze milhões. Devem estar todas no Nordeste, certo? Que mania nós temos de procurar os problemas tão longe quando eles estão debaixo de nossos olhos. Será que não queremos ver? No Polígono das Secas, no Nordeste, 6,5% das crianças com menos de 5 anos de idade são subnutridas. Na Cidade de Deus são 10%.

E por que há fome? Falta alimento, como sugeriu Malthus no longínquo ano de 1798? Sabemos que não. Há alimento suficiente para alimentar mais de nove bilhões de pessoas no planeta. Somos pouco mais de seis. Falta acesso ao alimento, isso sim. Enquanto alguns milhões de brasileiros aguardam ansiosos o fim da feira para engolirem as laranjas apodrecidas que não julgamos dignas para o nosso suco, outros pagam algumas dezenas de reais para se sentarem a mesa de uma churrascaria onde o alimento é espetáculo, compondo cascatas de camarões e desfilando em bandejas e espetos.

Há solução? Há, sempre há. Mas infelizmente existem interesses maiores que fazem com que o governo invista muitos bilhões no financiamento da grande monocultura de soja e algodão e alguns trocados na pequena agricultura familiar, responsável pela produção de mais de 70% dos alimentos consumidos internamente no Brasil: 24% da pecuária de corte; 49% do milho; 58% da banana; 54% da pecuária de leite; 40% das aves e ovos; 72% da cebola; 67% do feijão; 58% dos suínos e 84% da mandioca (Consea). Enquanto isso continuar, será mais fácil um boi europeu ser alimentado com farelo de soja brasileira que um dos nossos pobres conseguir pagar por um bife do boi em questão.

Se o governo não faz sua parte, façamos a nossa. Mas não por nós, não para quitar as contas com a nossa consciência. Façamos pelos famintos. Façamos pelos que, como nós, não deveriam passar fome.

Retomando Josué de Castro, uma de suas mais célebres frases dizia que ‘metade da população brasileira não dorme porque tem fome; a outra metade não dorme porque tem medo dos que tem fome’. Ele não poderia estar mais certo.