terça-feira, 13 de abril de 2010

:: Sobre chuva e culpa

288 mm de chuva em 24 horas. Mais que a média mensal. Combinação de um dia quente e de grande evaporação com a chegada de uma frente fria carregada de umidade. Muita água de uma vez só. Para escoar, rios canalizados e redes pluviais deficientes e parcialmente entupidas. A maré alta prejudicou o fluxo dos rios e a água acumulou. Enchente. Atrasos, compromissos cancelados, dificuldade para chegar em casa, carros perdidos.
A tragédia podia parar por aí, não fosse a geografia peculiar da cidade do Rio de Janeiro, repleta de encostas. A tragédia podia parar aí, não fossem essas encostas densamente ocupadas por populações pobres. Muita chuva, solos encharcados, ausência de cobertura vegetal, peso das construções. Deslizamentos. Casas perdidas, vidas perdidas. Desastre.
"A culpa é de toda a sociedade", disse Cabral. "Ninguém mandou construir em encosta. Cavou a própria cova", disse o caixa do supermercado onde eu fazia compras dois dias após a tragédia no Morro do Bumba, em Niterói.
Fico me perguntando como há pessoas que acreditam que a decisão por construir em encostas, várzeas ou qualquer outra área de risco foi de fato uma escolha. Que outra escolha poderia haver? Viver em áreas regulares? Com que dinheiro? Viver na periferia? Com este sistema de transportes que te rouba 5 horas diárias entre idas e vindas do trabalho?
Política habitacional? Oi? Geração e distribuição de renda? Hein? Articulação de redes e subsídios aos transportes? Ahn?
No final, a culpa é sempre da vítima. E agora há mais um forte argumento para obter apoio da opinião pública para a remoção de favelas. "É para o bem dessa população". Depois da Nova Sepetiba do Garotinho vem aí a Nova Conchinchina do Paes e do Cabral. E onde não há mais favela, refestela-se o capital imobiliário, remunerado e satisfeito. Mais encostas livres para plantar verde e acumular verdinhas.

terça-feira, 16 de março de 2010

:: A emenda Ibsen e a imoralidade

Como o tempo sempre joga contra nós, não consegui manter o blog no ano passado. Sequer pretendia reativá-lo, mas a mais recente e absurda disputa política envolvendo o Rio de Janeiro me deu motivação suficiente para pelo menos mais este texto.

O deputado Ibsen Pinheiro, do PMDB do Rio Grande do Sul, propôs recentemente uma emenda que apresenta uma nova forma de gerir a distribuição dos royalties advindos da exploração do petróleo no Brasil. De forma simples e clara, isso beneficiaria todas as unidades da federação à exceção dos estados do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, sendo este o mais afetado.

Antes de qualquer avaliação da emenda é preciso compreender o que são os royalties, o centro desta discussão. Royalties podem ser entendidos como uma espécie de direito autoral, pago quando alguém ou alguma empresa explora comercialmente algo que não a pertence. Uma rádio paga 'royalties' à gravadora por montar sua programação com base em obras musicais alheias; empresas pagam royalties a outras empresas quando aplicam a um produto seu a tecnologia patenteada por outra empresa e, seguindo esta lógica, as empresas que exploram o petróleo na plataforma continental brasileira pagam royalties aos municípios e estados em cuja área o recurso é extraído porque estão lucrando com a comercialização de algo que não lhes pertence.

A atual forma de distribuição de royalties no Brasil remunera os municípios e estados produtores e leva em consideração outras questões além da acima exposta. Em primeiro lugar, a extração de petróleo gera danos ambientais que atingem diretamente a área onde o recurso é explorado. Em segundo lugar, a atividade de extração gera uma grande atração populacional para os municípios litorâneos do norte do estado do Rio de Janeiro, promovendo crescimento exponencial da população, sobrecarga sobre a estrutura urbana e sobre os serviços oferecidos nestes municípios. Mais gente pra estudar, pra adoecer, pra circular no transporte público, pra gerar lixo, pra poluir. O município de Rio das Ostras, por exemplo, teve acréscimento populacional de 105% entre 2000 e 2007, convive com constantes congestionamentos e observa o crescimento das taxas de criminalidade. Há que se considerar, ainda, que o petróleo é o único produto sobre o qual o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) incide no estado de consumo, não no estado de produção. Em outras palavras, o Rio de Janeiro concentra a produção de cerca de 80% do petróleo nacional, mas só recebe o ICMS que incide sobre a parte deste petróleo consumida no estado do Rio.

Por tudo isso, a política de distribuição de royalties é uma política compensatória, não um privilégio como muitos pensam. Ela remunera os municípios e estados produtores por todos os impactos negativos que a indústria petrolífera provoca.

A emenda Ibsen propõe que os royalties sejam distribuídos pelos estados seguindo a mesma regra que baseia a distribuição de recursos federais para o Fundo de Participação dos Estados. Assim, o Rio de Janeiro perderia cerca de R$7 bilhões anuais, deixando de ser o principal beneficiário para ocupar a amarga 22a. posição no ranking de recebimento de royalties num total de 26 estados. Resumindo, a emenda é um acinte. Absurda e imoral.

A Câmara dos Deputados e o Senado já a aprovaram. O presidente Lula pode vetar. Se vetar, cria um problema política com 24 estados brasileiros. Se não vetar, cria um problema político com 2 estados, sendo um deles, o Rio, um histórico reduto eleitoral do PT.

Considerando que estamos em ano eleitoral e que seja qual for a decisão do Lula, isso cria um problema político para o presidente, tudo aponta para uma mesma direção: a emenda Ibsen tem pretensões políticas, não econômicas. O deputado Ibsen Pinheiro não pretende com ela ganhar uns trocados às custas do Rio de Janeiro. Pretende, sim, ajudar a minar a candidatura de Dilma Roussef. E por fazer isso de forma imprudente, às custas de um estado, seus municípios e sua população, a emenda merece ser duramente repudiada.

Acompanhemos as cenas dos próximos capítulos...

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Quem tem medo da fome?

Escrevi este texto esta semana para ser lido no lançamento de uma campanha de doação de alimentos para orfanatos e outras instituições em um dos colégios onde trabalho. Escapa um pouco à proposta do blog, mas é bastante oportuno.
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Em 1946 o intelectual brasileiro Josué de Castro publicou um livro intitulado A Geografia da Fome. Naquela ocasião o livro causou grande polêmica, pois a fome era entendida como algo insuperável e resultante de adversidades da natureza. Se as pessoas passam fome no Nordeste, por exemplo, é por causa da seca – pensava-se. Castro inova ao alertar para o óbvio: a fome é um flagelo fabricado pelos homens, contra outros homens.

Sessenta e dois anos mais tarde estamos aqui, refletindo sobre a fome. E não se trata daquela fome que a gente sente às seis da manhã, antes de nos sentarmos para o café da ou aquela fome que sentimos por volta das nove, quando começamos a contar os minutos para o recreio, quando vamos pedir um pão de queijo na cantina. Estamos aqui buscando refletir sobre uma fome que dói. Uma fome que mata. Uma fome que nunca sentimos. E é por que não queremos senti-la que devemos nos indignar diante da persistência dela.

É comum lembrar-se da África quando o assunto é fome. Não precisamos ir tão longe. Do lado de cá do atlântico há muitos famintos. Na Bolívia? No Suriname? Lá também... Mas segundo a PNAD realizada pelo IBGE em 2004, 13 milhões de brasileiros passam fome. Treze milhões. Devem estar todas no Nordeste, certo? Que mania nós temos de procurar os problemas tão longe quando eles estão debaixo de nossos olhos. Será que não queremos ver? No Polígono das Secas, no Nordeste, 6,5% das crianças com menos de 5 anos de idade são subnutridas. Na Cidade de Deus são 10%.

E por que há fome? Falta alimento, como sugeriu Malthus no longínquo ano de 1798? Sabemos que não. Há alimento suficiente para alimentar mais de nove bilhões de pessoas no planeta. Somos pouco mais de seis. Falta acesso ao alimento, isso sim. Enquanto alguns milhões de brasileiros aguardam ansiosos o fim da feira para engolirem as laranjas apodrecidas que não julgamos dignas para o nosso suco, outros pagam algumas dezenas de reais para se sentarem a mesa de uma churrascaria onde o alimento é espetáculo, compondo cascatas de camarões e desfilando em bandejas e espetos.

Há solução? Há, sempre há. Mas infelizmente existem interesses maiores que fazem com que o governo invista muitos bilhões no financiamento da grande monocultura de soja e algodão e alguns trocados na pequena agricultura familiar, responsável pela produção de mais de 70% dos alimentos consumidos internamente no Brasil: 24% da pecuária de corte; 49% do milho; 58% da banana; 54% da pecuária de leite; 40% das aves e ovos; 72% da cebola; 67% do feijão; 58% dos suínos e 84% da mandioca (Consea). Enquanto isso continuar, será mais fácil um boi europeu ser alimentado com farelo de soja brasileira que um dos nossos pobres conseguir pagar por um bife do boi em questão.

Se o governo não faz sua parte, façamos a nossa. Mas não por nós, não para quitar as contas com a nossa consciência. Façamos pelos famintos. Façamos pelos que, como nós, não deveriam passar fome.

Retomando Josué de Castro, uma de suas mais célebres frases dizia que ‘metade da população brasileira não dorme porque tem fome; a outra metade não dorme porque tem medo dos que tem fome’. Ele não poderia estar mais certo.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

:: Crise

Ao longo da evolução do capitalismo percebe-se que a relação entre Estado e economia sofreu profundas alterações. Durante os séculos XVIII e XIX imperou a lógica liberal. Estado e economia não se misturavam. Cada um no seu quadrado. Adam Smith criou a metáfora da Mão Invisível do Mercado para expressar a idéia de uma auto-regulação do mercado, através do mecanismo infalível da Lei de Oferta e Procura.

Foi um período de forte crescimento econômico. Não demorou muito para que empresas norte-americanas se tornassem gigantescas corporações. Nas primeiras décadas do século XX tudo ia muito bem, especialmente porque a Europa, arrasada pela I Guerra, precisava importar quantias significativas de produtos dos Estados Unidos, o que estimulou investimentos em ações destas empresas. Mas então, no final da década de 1920, com a economia já recuperada, a demanda por importações na Europa é reduzida drasticamente, o que derruba o valor das corporações americanas. Procurando reduzir as perdas, muitos investidores colocam suas ações a venda. Foi então que a Lei da Oferta e Procura passou sua 'mão invisível' na bunda do mercado. Crise generalizada.

Mudança de planos. O Estado precisava retomar investimentos, arrumar a bagunça e dar novos rumos à economia. Foram longas décadas de Keynesianismo. Até que o Estado, pesado demais para sustentar seu próprio tamanho, começa a reduzir sua participação direta da economia. Privatizações, concessões à iniciativa privada, corte de investimentos. Nesse contexto, muitas corporações já tinham superado em importância econômica países inteiros. Pressionados, os Estados passam a regular câmbio, controlar juros, emissão de moeda, defender fronteiras e passaram a atuar na economia como coadjuvantes. O circo no neoliberalismo estava armado.

Eis que, numa semana bastante conturbada, uma série de empresas do setor financeiro norte-americano decretam falência. Entre elas, o segundo maior banco do país e a terceira maior seguradora do mundo. Mas o que surpreende é o que vem depois: o governo dos Estados Unidos injetam bilhões de dólares para estatizar estas empresas e evitar o pior, um revival de 1929.

Fica a sensação de que o neoliberalismo foi colocado contra a parede. Será que o Estado Mínimo voltará a ganhar espaço? Será que se inicia uma nova fase dentro da evolução do sistema capitalista? É cedo para avaliar, mas não há dúvidas de que o mês de setembro, mais uma vez, entrará para a história dos Estados Unidos. Naquela ocasião, duas torres tombaram. Agora, tombam velhos paradigmas.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Classe Mérdia

Já faz algum tempo que a imprensa brasileira noticiou, com pompa, o crescimento da classe média. Agora, 52% dos brasileiros pertencem ao bolo do meio. O dinamismo econômico, a geração de empregos e mais um monte de blá blá blás teriam contribuído para a redução da pobreza e inclusão de milhões de brasileiros na classe média. E em dezembro o Papai Noel vem aí.

Estatística é uma coisa impressionante. Dá pra transformar a realidade apenas alterando alguns detalhes nas metodologias estatísticas. O Brasil pode ser a décima maior economia do planeta ou a décima quarta, o Rio pode ter menos homicídios que São Paulo ou se tornar a capital mais violenta, os pobres podem deixar de ser pobres. Tudo assim, na ponta do lápis, no visorzinho da calculadora.

Que a pobreza tem sido reduzida no país, bem, isto é incontestável. Algumas políticas (aliás, duramente criticadas pela classe média e pela elite) têm, sem dúvida, provocado efeitos positivos para os mais pobres. O Bolsa Família, por exemplo, vem contribuindo para o desenvolvimento do comércio no Nordeste. Já são três anos consecutivos de crescimento a taxas chinesas! E se o comércio cresce, cresce a produção, aumentam os empregos, aumenta a renda média da população, que impulsiona o consumo, que estimula o comércio...

Mas a nova classe média brasileira é, segundo a Fundação Getúlio Vargas, aquela constituída por famílias com renda mensal entre R$1065 e R$4591. Não, você não leu errado. Não é renda per capita. É renda familiar! De repente eu fiquei rico. Dormi classe média e acordei elite.

Enquanto eu vou ali a Paris fazer umas comprinhas, recomendo que vocês assistam este vídeo. É genial.

Nota: post motivado por debates virtuais com o Breno.

Mais do mesmo

Hoje os jornais amanheceram estampando, em suas capas, o interesse de José Serra, prefeito de São Paulo, em construir uma nova rodovia ligando Rio de Janeiro e São Paulo. O projeto estima custos de aproximadamente R$ 3 bilhões e a rodovia seguiria um traçado paralelo à já existente Via Dutra. O objetivo seria desafogar a rodovia, que, segundo o prefeito, estaria saturada.

Errar é humano, mas insistir nos erros é politicagem (leia-se sacanagem). Torrar mais dinheiro no fortalecimento de um sistema de transportes de base rodoviária altamente ineficiente e caro, pra não falar altamente poluente? Construir uma rodovia paralela a outra já existente quando a concessionária que opera a Via Dutra está criando vias marginais ao longo dos trechos mais críticos, como Rio-Nova Iguaçu? Engavetar o projeto de construção do trem de alta velocidade ligando as duas metrópoles e articulando a região industrial do Vale do Paraíba? Quem ganha com isso?

A princípio, apenas as empreiteiras. Mas eu duvido se estas mesmas empreiteiras não vão aparecer na prestação de contas da campanha Serra 2010 como principais doadoras.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Eu já sabia...

Abri o Globo Online hoje e li "Fracassam negociações de Doha para liberalização do comércio mundial". Confesso que deu vontade de escrever num pedaço de papel o que os gaiatos sempre mostram para as câmeras da TV nas finais esportivas: "Eu já sabia!".

O principal obstáculo à liberalização do comércio mundial hoje é a questão dos subsídios agrícolas oferecidos aos produtores pelos países desenvolvidos, sobretudo pelos Estados Unidos e pela União Européia. Os países subdesenvolvidos, com destaque para Brasil, China e Índia, líderes do G-20, alegam que não conseguem competir com os produtos agrícolas dos países mais ricos e estes dizem que não vão reduzir os subsídios por se tratar do setor mais frágil de suas economias. Chega-se a um impasse que pretendia-se resolver durante as negociações mais recentes da já desgastada Rodada de Doha. Doce ilusão. Seria o mesmo que esperar que Palestinos e Israelenses tirassem do papel o Plano de Partilha da Palestina após uma reunião diplomática com duração de 10 dias. Com interesses muito distintos na mesa fica muito difícil chegar a acordos favoráveis a todos. Não dá pra somar zero. Pra alguém ganhar, alguém vai perder.

"Rodada" é o nome dado aos períodos de negociação comercial no âmbito da OMC, antigo GATT. O nome subseqüente é uma referência à cidade que abrigou o primeiro fórum de discussões do debate. Já houve Rodadas de Genebra (1947 e 1955-1956), de Annecy (1949), Torquay (1950-1951), Dillon (1960-1961), Kennedy (1964-1967), Tóquio (1973-1979), Uruguai (1986-1993) e Doha (2001-...). A de Doha é a que envolve mais países, mais temas, mais controvérsias e é a primeira rodada desde a criação da Organização Mundial do Comércio, em 1995, decisão tomada durante a rodada do Uruguai.

Em setembro as negociações serão retomadas mais uma vez. As questões serão as mesmas, os atores envolvidos também. Alguém tem um palpite sobre o resultado?

Para ler mais sobre a OMC e as rodadas comerciais, acesse o artigo sobre a OMC na wikipedia, na versão em inglês. Completíssimo.